21.11.04

Eu sou eu, você é você


Ai ai ai... Quem um dia não passou por isso que atire a primeira pedra nos apaixonados de plantão. Podem começar que já coloquei meu capacete...

C’est la vie mes ami, c’est la vie...
Baisers

Na volúpia de preencher as lacunas da carência, de consumar o sonho do encontro, o ser desejante, sempre à mercê do acaso, defronta-se súbito com o objeto de desejo, num encontro sem procura com quem tanto procurava. E com gana morde a maçã que se oferece na passagem. Irrompe a euforia inesperada que balança tudo, desarruma tudo, tira tudo da ordem. Na vertigem do redemoinho, a lucidez se dilui no jogo diabólico da sedução desenfreada e a vontade de posse dança um minueto com a necessidade de entrega.
Aconteceu o imprevisto mais esperado. Há que faltar à festa, renunciar à viagem, adiar encontros. Amigos não entendem, olham com velada censura, talvez com ciúme ou inveja. Para o ser desejante, tudo é deslumbramento, encantamento, exaltação e disposição para a aventura. Olhos radiantes brilham como estrelas, sorrisos cálidos iluminam os rostos, é luminosa a beleza dos corpos, e tudo que deles emana, do perfume ao suor. Loucura!
E cada um quer fazer de si o delírio do outro, quer ser a própria concretização do sonho do outro. Na paixão, o ser se explica, se entende, se justifica no mundo, e busca no outro a plenitude. Ah, vontade de falar de si! Vontade de beber as palavras do outro! Ah, vontade irreprimível de contar, de espalhar aos quatro cantos! O apaixonado sente, vive e enlouquece com a paixão.
Emoções transbordam, extrapolam, transcendem. A paixão não tem medidas. A paixão é barroca. Para o apaixonado, cada coisa tem sentido, qualquer coisa ganha sentido, tudo faz sentido, e a unidade dos sentidos provoca súbitos arrepios de plenitude. Apaixonado ouve ópera (a paixão é operística!) Vê filmes épicos (é épica também!) Toma champanhe na cama (é deliciosamente extravagante!).
Mas a paixão é também ouvir música brega, tomar pilequinho, dançar coladinho e ler poesia derramada. Mandar flores, telefonar a cada hora, guardar retrato na carteira e chicletes no bolso. Escanhoar, maquiar, mudar o guarda-roupa, marcar férias, passear de mãos dadas após a chuva, sentir o cheiro de terra molhada, colher flores silvestres, ouvir passarinho. Há ternura no gesto, humor na frase, sensualidade no toque e euforia na dança do universo. Apaixonado desenha o futuro no impulso de ser feliz.
O que pensam da paixão os apaixonados? Ora, não pensam nada. Tivessem tempo, talvez gostassem de entender o que é a paixão e o delírio que a embala; saber por que esta pessoa e não outra. Celebrar o destino que os uniu. Porém, apaixonados não querem entender nada. Não sabem se desejam o outro por esta ou aquela razão e paixão tem lá razão? Desejam por tudo ou por nada. Mas desejam completamente. Impossível classificar o objeto da paixão, ele é único, não cabe na moldura de um adjetivo, e existe apenas para atender o ser desejante. O apaixonado gosta de estar apaixonado pela sua paixão. E isso é tudo.
Aos poucos, a palavra vai se tornando desnecessária, vai sendo substituída por murmúrios e afagos, por sorrisos e carinhos, olhos que se devoram, mãos que se apertam, quase em silêncio. Dizem sim a tudo, ficam cego ao mundo e devotam-se um ao outro. Encontram-se num abraço, no qual cada um sente que abraça tudo o que deseja do mundo. E no beijo, repetem Diderot: "Inclina teus lábios sobre os meus e que ao soltar-se da minha boca vá contigo a minha alma". É êxtase, desfalecimento, aniquilamento.
Imprevisíveis e misteriosas são as armadilhas da paixão. Na volúpia insana de ser tudo o que falta ao outro, um lança ao abismo do outro. Total entrega de um ser ao outro, abandono de um ser no outro e o faz com tal ímpeto que, se falha o outro e não o acolhe, pode não resistir, não se retomar e se perder a paixão tanto infla de vida o apaixonado que parece prenunciar o desenlace, como o sol do meio-dia é grávido de crepúsculo.
Se ao contrário, encontra braços que o acolha, eis a doação de um ser ao outro, a rendição de um ser por outro, a diluição de um ser no outro. Apaixonados se imbricam, se penetram, se desvanecem na paixão. A comunhão plena e absoluta transforma dois corpos em um ser.
O apaixonado rendido sente que caiu na armadilha, debate-se e vai se afundando no poço com limo nas bordas. Sem entender o que aconteceu, intui que nele algo rompeu-se: coisa miúda, um gesto, uma roupa, um objeto, uma frase palavras são cacos de vidro; descuidou-se, o sangue brota. Aos teus olhos, o outro torna-se um estranho, e desaba do Olimpo à vala comum. Se falhou, não é Deus, é apenas mortal. E o ser desejante desapaixona-se enlutado.
Paixão é estado de euforia perpétua, de ser não sendo, a que só os deuses resistem. Que os mortais desejantes encontrem no amor o bálsamo para as feridas da paixão. E eis Clarice Lispector, alçada, por justiça e glória, a oráculo: Eu sou eu, você é você. É certo. Vai durar.

Alcione Araujo
Jornal Estado de Minas

Nenhum comentário: